Lápis do olho

Por: Fábio Brüggemann

Leia na íntegra o maravilhoso prefácio do escritor e editor Fábio Brüggemann para o livro Expedição Natureza – Santa Catarina.

Talha-mar " Rinchops nigra ", voando sobre a Lagoa da Conceição

O lápis do olho

Ao ver o material bruto que resultou na limpidez deste álbum, a primeira indagação que me surgiu foi: por que um sujeito resolve sair de casa, carregar pesados equipamentos, entrar no meio do mato, subir montanhas e escorregar no limo dos riachos para fotografar a natureza? Ao tentar respondê-la – se é que há resposta adequada e única – pensei nas imagens (que também só as vi em fotografia) dos desenhos rupestres feitos numa época em que o homem ainda desconhecia a palavra arte, porque não precisava de seu conceito. As paredes da caverna, de alguma forma, eram paredes da própria casa.

Avanço alguns séculos na história e penso no escritor Hermann Hesse, quando descreveu suas caminhadas pelo bosque próximo à sua cabana, e nas reflexões do filósofo norte-americano Henri Thoreau, quando refugiou-se no lago Walden para ficar junto à natureza e descrevê-la. Será que a necessidade destes escritores não foi a mesma dos homens na caverna e, também, aquela que faz um sujeito sair de casa para fotografar a natureza?

Os homens que pintavam cavernas grosso modo levavam a representação do mundo para dentro de suas casas. Fotografar a natureza talvez tenha igual sentido. Mesmo assim, por que essa gente precisa tanto trazer para dentro de casa uma representação do que existe fora dela? Será que é para confirmar a apatia dos homens de Platão, que apenas observavam a sombra do mundo de dentro da caverna? Será para mostrar sua capacidade de representar o mundo? Será para dizer que aquela porção representada, daquele ponto de vista, apenas aquele sujeito a vê? Ou será, ainda, movido por um desejo comunitário, para preservar um instantâneo da natureza e mostrar ao futuro que aquilo um dia existiu?

De qualquer forma, há uma ilusão nesse desejo, pois é impossível guardar a natureza. O que se guarda é apenas uma representação dela. Presumo, diante destas questões, que o ser humano precisa não apenas olhar diretamente para a natureza, ou vivê-la intensamente, mas também olhar para uma representação dela, com a intenção, talvez – como pensava Aristóteles –, de melhor conhecê-la.

O fotógrafo Zé Paiva – ciente de que a fotografia da natureza na qual ele caminhou e que registrou não é a verdade –, de todas as hipóteses acima apontadas, fotografa para preservar. Estando diante de rios, lagos, árvores quase fabulares (como a araucária), pássaros, pequenos insetos, bichos e plantas catalogadas como “em vias de extinção”, cachoeiras, homens e mulheres e também da beleza e da destruição deixada por estes homens e mulheres, Paiva tem a mesma vontade de cientistas como Fritz Müller, Fritz Plaumann e do padre Raulino Reitz que, graças a uma obstinação, mesmo que não tenham usado a fotografia, registraram para o futuro aquilo que viram.

E é curioso que um dos inventores da fotografia, o inglês William Fox Talbot, tenha chamado a recém invenção de “O lápis da natureza”. Passado todo este tempo, penso numa versão shopenhauriana, para supor que a fotografia é o lápis do olho, pois só se vê o que o olho quer, não o que a natureza pretensamente impõe. A fotografia de uma lagoa, como as muitas que Zé Paiva fez, será sempre vista de formas distintas se feita por diferentes fotógrafos.

Ainda nos primórdios da fotografia, Albert Bisbee, criador, em 1853, de um manual de daguerreotipia, dizia que “os objetos delineiam-se a si mesmos, transparecendo, assim, a verdade”. Hoje, esta visão de fotografia como verdade, ainda mais com a invenção da tecnologia digital, não se sustenta mais, pois ela não é a verdade e, em alguns casos, nem mesmo é uma representação da verdade. A fotografia é um indicador, um modo de dizer que a imagem de uma floresta não é apenas uma floresta, mas o que pode ter sido dela, além de outra indicação: a de que em um determinado momento histórico – mesmo que tenha passado apenas um segundo – alguém construiu uma imagem. Neste caso, um fotógrafo.

Talvez, por tudo isso, as fotografias ainda precisem de legenda, porque não basta olharmos a imagem de um bugio, como aquele que Zé Paiva fotografou, porque ainda restarão perguntas como: onde estava o bicho? Qual o nome do lugar? Posso ir lá? Tinha mais destes? Se fotografar é chamar a atenção para algo, ver uma fotografia é fazer perguntas a respeito deste “algo”.

A fotografia é, segundo Joan Fontcuberta, autor do livro El beso de Judas, fotografia y verdad, “uma ficção que se apresenta como verdadeira”. E dado esse caráter inevitável de ficção, resta, ainda, continua o autor, o “controle exercido pelo fotógrafo para impor uma direção ética a sua ficção”.

Zé Paiva, além de construir estas representações da natureza em belíssimos quadros e ser, como escreveu o poeta e ensaísta Péricles Prade, “um caçador de imagens edênicas”, tem este controle e impõe, decididamente, uma direção ética às suas ficções. Ele, ao nos mostrar belos indícios da existência da natureza, propõe também que seja preservada. Não apenas em nossa memória, ou para levarmos para dentro de casa, mas no espaço específico de onde ele a tirou.

Também se diz “tirar” para fotografar. Paiva tira, mas não trai aquilo que fotografa. Ele nos empresta seu olhar, mas a imagem que queremos ver mesmo será delineada em nosso olho, que processará, assim, a idéia de preservação, de beleza, de conceito de arte, de encantamento, mas também de desgosto por indicar ainda idéias de destruição de uma realidade que, talvez, em um futuro próximo, não sirva mais de modelo.

Este álbum é também um aviso.

Fábio Brüggemann
Editor, escritor e jornalista

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