O DNA da paisagem

livro Expedição Natureza Gaúcha estará na Biblioteca do Fórum Internacional de Livros de Autor, dentro do 5º FestFotoPoa, que acontece de 6 de abril a 1º de maio de 2011. Leia na íntegra o brilhante prefácio do livro, escrito pelo doutor em ecologia da paisagem, professor Rualdo Menegat:

Sitio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, Missões Jesuíticas dos Guaranis

A identidade de cada pessoa é indissociável da paisagem e do lugar onde nasceu. O lugar é uma espécie de sobrenome invisível: embora não conste na certidão de nascimento, possui a mesma importância do sobrenome, como se fizesse parte da natureza humana. Quando conhecemos alguém pela primeira vez, logo perguntamos onde essa pessoa nasceu e onde vive. Também costumamos falar de sobrenomes endereçando-os a algum lugar, como os Vargas, de São Borja; os Verissimo, de Cruz Alta; os Scliar, do bairro Bom Fim; os Barbosa Lessa, de Piratini; os Lopes, de Bagé. A cultura ameríndia também tinha endereço natural, como os caingangues, do Planalto Meridional; os guaranis, das Missões; ou os minuanos, do Pampa.

Cada lugar tem características tão próprias que poderíamos pensá-lo como se portasse uma impressão digital ou um DNA que lhe fossem únicos. Porém, diferentemente dos genes dos ancestrais, os “genes do lugar” não ficam automaticamente registrados no organismo. Mas ficam impregnados, desde que nascemos, em nosso espírito e cultura de modo indissociável. Seja a língua, o sotaque, a comida, os jogos, a religião, tudo está profundamente influenciado pela paisagem, onde a cultura vai sendo cotidianamente construída.

A paisagem é a moldura de nossa cultura e, ao mesmo tempo, define os limites e possibilidades de expansão desta. A cultura desenvolvida pelos ticunas no alto Solimões não é adequada para a vida nos Andes Centrais, pois considera fundamentalmente a paisagem da Floresta Amazônica. Do mesmo modo, a cultura dos incas, no Peru, forjada pela natureza inóspita das altas montanhas andinas, não se adapta às terras baixas e planas do grande Pampa. Uma cultura torna-se tão circunscrita à paisagem que tem dificuldades de se adaptar a outros lugares. Tal restrição ocorre porque quando uma cultura domestica a paisagem ao longo do tempo ela ajusta os instrumentos culturais, desde habitação até visão de mundo, àquele lugar. O processo de domesticação não é outro senão a transferência do DNA do lugar à cultura, e vice-versa, de modo que ambos se pertençam. Isto é, ao ver a paisagem, logo identificamos o personagem que a habita, e, ao ver este, de imediato pensamos na paisagem.

Quando a paisagem é domesticada, passa a ser importante ingrediente de coesão de grupos humanos. Toma parte das qualidades peculiares de um povo, integrando-lhe o caráter, o modo de ser, como em “ser gaúcho”, ou “ser pampiano”, “serrano”, “missioneiro”, “litorâneo” etc. Fazemo-nos pertencer ao lugar, às vezes, sem mesmo conhecê-lo apropriadamente. Embora possamos não ter visitado todas as paisagens do Estado, dizemo-nos mesmo assim “gaúchos”, às vezes sem nem sequer ter saído do lugar em que nascemos. Por força do hábito, podemos enxergar para além da própria realidade da paisagem, e a vemos mais do ponto de vista cultural que do ponto de vista da descrição natural, de como ela é de fato. Como se criássemos certos mitos acerca do lugar, numa espécie de cegueira.

Por exemplo, com frequência dizemos que o Pampa gaúcho é uma “enorme planície”. Com isso, queremos fazê-lo parecer semelhante ao vasto Pampa argentino, ecorregião que abrange cerca de 600.000 quilômetros quadrados, mais do que duas vezes a área do Rio Grande do Sul. O Pampa argentino é tão extenso e as terras tão planas que a drenagem é mal definida e a água da chuva escoa com dificuldade, acumulando-se em lagos por vezes efêmeros. Originalmente, a palavra espanhola pampa, derivada do quéchua bamba, significava apenas uma pequena planície nos vales intermontanos dos Andes Centrais. Quando no século XVI os espanhóis avançaram rumo ao sul e depararam com a imensidão da paisagem de terras planas e vegetadas por gramíneas, chamaram-na de “grande pampa”.

Na verdade, a área de terras verdadeiramente planas e baixas de nosso Estado é muito pequena. Não temos nem planícies em vales intermontanos nem tampouco grandes extensões planas. Em algumas partes, o relevo é ondulado, com coxilhas e morros arredondados, canais fluviais sempre bem escavados; e, em outras, acidentado, com vales fluviais profundos, morros agudos, serras, escarpas e cânions. Toda essa morfologia ocorre na metade sul do Estado, reconhecida como pampiana.

Dito de outro modo, nosso Pampa tem paisagens muito menos monótonas que o congênere argentino. Em muitos casos, a paisagem sulina é tão peculiar que há um esforço para não vê-la, apenas para fazer de conta que somos semelhantes aos vizinhos do grande Pampa. Indiscutivelmente, nossa cultura é pampiana, o que não quer dizer que nossas paisagens sejam exatamente iguais às das demais culturas pampianas dessa vasta região meridional da América do Sul.

Há, na verdade, uma diversidade de gaúchos na mesma medida da diversidade das paisagens onde essa cultura se instalou e se expandiu. Dizem-se gaúchos os que habitam a Patagônia, onde criam ovelhas nas zonas mais amenas desse semideserto da região mais meridional e fria de nosso continente. Também se dizem gaúchos os que povoam grande parte do Chaco argentino-paraguaio e até do Pantanal Mato-Grossense, onde criam gado e tomam mate frio, o tereré. São gaúchos os que ocupam a área contígua ao Rio Grande do Sul chamada de Campos Sulinos, no vizinho Uruguai; e, claro, são gaúchos os que lidam com o gado e tomam mate quente, porém em cuia pequena, na imensa planície argentina chamada de grande Pampa.

Enfim, as vastas terras baixas e planas que se estendem desde a fria Patagônia e grande Pampa até parte do Chaco paraguaio-argentino e respectivas áreas adjacentes um pouco mais elevadas ensejaram uma ocupação humana que possui forte identidade na cultura do manejo de gado, chamada de “gaúcha”. Na ampla configuração de nosso cenário, qual seja, a parte não andina da região meridional da América, somos a porção do extremo oriente dessa cultura, habitando uma espécie de “‘pampa alto”, “pampa coxilhado” ou “pampa serrano”. Assim como também pertencem a um “pampa alto”, porém paisagisticamente distinto, os que habitam as terras elevadas no bordo oeste do Pampa argentino, mais próximo dos Andes.

Visitar o lugar do outro, do vizinho, do estrangeiro longínquo, é sempre um exercício cognitivo e cultural que ajuda a descobrir a própria paisagem para além do hábito que cegamente vamos mantendo. Do mesmo modo, quando outras pessoas que não moram onde vivemos vêm descrever “nosso lugar”, aprendemos a ver a terra pelos olhos daqueles que não estão a ela habituados, isto é, embebidos em uma espécie de cego encantamento.

O hábito, por ser muito afeiçoado ao lugar, não permite que vejamos a paisagem a partir de outras perspectivas ou pontos de vista que não sejam “o nosso”, quer dizer, de nossa identidade cultural aderida ao território. Por isso, as narrativas de viajantes sempre foram um gênero literário de muito sucesso em todas as épocas. A começar pelas mais antigas, como as Historias do grego Heródoto, o “pai da História”, que no século V a.C. descreveu no livro II o mundo egípcio com horror e fascínio e nos fez ver que cultura, etnografia e história pertencem ao lugar. Ou as do veneziano Marco Polo, que narrou no livro Il Milione a viagem ao então estranho mundo oriental no século XIV. Ou as consagradoras descrições dos naturalistas românticos do século XIX, em que se incluem as de ilustres sábios que visitaram o Rio Grande do Sul, como Auguste Saint-Hilaire, Aimé Bonpland, Friedrich Sellow, entre outros.

O trabalho de naturalistas e viajantes constitui fonte de conhecimento de nossa paisagem a partir de outras perspectivas. Mais além, são também uma memória das mudanças paisagísticas que ocorreram desde épocas em que os únicos instrumentos de registro eram a escrita e o desenho em cadernetas de campo. Os trabalhos poderiam ser acompanhados de coleta de espécimes vegetais, animais e minerais, bem como de belas aquarelas. No século XX, principalmente a partir da consolidação dos cursos universitários de História Natural nos anos 1950, os relatos de viagem que integravam várias modalidades disciplinares foram perdendo terreno, e o gênero quase desapareceu.

Por isso, a publicação desta obra do fotógrafo Zé Paiva é motivo de grande e estupenda alegria. Utilizando-se de recursos modernos, do arsenal de equipamentos fotográficos e adequada logística, brinda-nos com uma incursão pela paisagem gaúcha que recupera a ideia dos percursos de uma viagem naturalista. Em vez de longos textos, Paiva apresenta uma obra numa linguagem visual própria da contemporaneidade. Mas suas fotografias não são a busca do óbvio, de imagens já muito difundidas em cartões-postais. Longe disso, o autor apresenta sequências inseridas dentro de incursões pela paisagem do Escudo Sul-Rio-Grandense, Planalto Meridional, Depressão Periférica e Planície Costeira. Os percursos, por sua vez, são localizados dentro da diversidade de paisagens que compõem as ecorregiões gaúchas.

Assim, o leitor poderá acompanhar o espírito de aventura, de busca, de investigação de um amplo espectro de temas que conformam o DNA de uma paisagem. Dos elementos rochosos, vegetais, animais, capturados em detalhes de rara composição. Do conjunto paisagístico denotado pelas formas do relevo, nuvens e cores do céu. De expressões culturais de habitantes de regiões distantes, ermas, onde se fabrica a simbiose dialética entre cultura e paisagem. São flagrantes fotográficos que anunciam nossa condição neste mundo: de espectadores e, também e cada vez mais, de modificadores da paisagem.

A incursão de Zé Paiva é uma busca instigante da natureza recôndita, aquela que ainda está de alguma forma guardada em parques e áreas de preservação. É um modo sutil de anunciar o pouco que resta e o tanto que perdemos ou que ainda podemos perder. Por ser fruto de um viajante que segue os passos da cognição naturalista, a obra tem perspectiva, tem posição: a de mostrar em cada flagrante como a natureza é bela e diversa na sua própria naturalidade, isto é, para além dos clichês habituais que porventura aprisionam as múltiplas paisagens de nosso Estado.

Expedição Natureza Gaúcha

Por: Rejane Martins

Há inúmeras maneiras de  manifestar preocupação coma natureza do planeta e com nosso futuro. O  fotógrafo Zé Paiva transformou sua inquietude em um  projeto documental que alia arte e ciência.

Gaúcho radicado em  Santa Catarina, Paiva percorreu todas as unidades de conservação de  proteção integral do Rio Grande do Sul, coletando material para o livro  Expedição NATUREZA GAÚCHA, que será lançado com uma  mostra fotográfica no dia 5 de agosto no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, em Porto Alegre. A exposição conta com curadoria do fotógrafo Manuel da Costa e será uma grande instalação com painéis  distribuídos sobre um fundo azul esverdeado, causando um efeito  diferenciado com o devido valor ao objeto principal da mostra: as  fotos.

No prefácio do livro, o doutor em Ecologia da paisagem  Rualdo Menegat sintetiza:
“A incursão de Zé Paiva é  uma busca instigante da natureza recôndita, aquela que ainda está de  alguma forma guardada em parques e áreas de preservação. É um modo sutil  de anunciar o pouco que resta e o tanto que perdemos ou que ainda podemos  perder.Por ser fruto de um viajante que segue os passos da cognição  naturalista, a obra tem perspectiva, tem posição: a de mostrar em cada  flagrante como a natureza é bela e diversa na sua própria naturalidade,  isto é, para além dos clichês habituais que porventura aprisionam as  múltiplas paisagens de nosso estado”.

Zé Paiva faz o registro da  diversidade da fauna e flora,terrestre e aquática, numa profusão de  planícies, montanhas, rios, praias,aves, mamíferos e outros tantos  animais. O fotógrafo explica que o projeto Expedição Natureza busca redesenhar a ecologia dos Estados brasileiros e chamar a  atenção da sociedade para as questões ecológicas antes que seja muito tarde. “Minha inspiração é a sabedoria de mestres naturalistas como Fritz Müller, Carl Friedrich von Martius e Padre Balduíno Rambo, que olhavam o evento científico aglutinado a uma compreensão, sensibilidade e qualidade artística. A busca deste olhar traduz uma nova possibilidade de  sensibilização da sociedade contemporânea para as questões  ambientais.

Pioneiro, o projeto é o primeiro a documentar com tal  cuidado e amplitude as áreas de proteção ambiental do Brasil. Em 2005, Zé  Paiva lançou a primeira etapa com o livro Expedição Natureza –  Santa Catarina, que pode ser encontrado nas livrarias e na  internet.  Incentivada pela Lei Rouanet do Ministério da Cultura, a  etapa no Rio Grande do Sul contou com o apoio da Secretaria Estadual do  Meio Ambiente (Sema – RS) e patrocínio da Eletrobrás e do Banrisul. Por  meio deste incentivo, enfrentando frio, chuva, calor intenso e adversidades que vão além das forças da natureza – como o sumiço e o  resgate de seu laptop -, Zé Paiva e seu assistente percorreram, de julho a  dezembro de2007, boa parte do território gaúcho para a natureza local e o  relacionamento do homem com os ecossistemas.

Além de 23 unidades de  conservação administradas pela Sema – RS, o projeto percorreu áreas  protegidas sob a responsabilidade do Governo Federal. As viagens foram  divididas em três expedições: a primeira passou pela planície litorânea,  percorrendo o litoral de Torres ao Chuí e voltando pela margem oeste da  Lagoa Mirim e Laguna dos Patos,explorando diversas unidades de  conservação tais como o Parque Nacional da Lagoa do Peixe e a Estação  Ecológica do Taim, entre outras. Na segunda expedição foi documentado o  planalto gaúcho; cobrindo a Reserva Biológica Estadual da Serra Geral,  Estação Ecológica Estadual de Aratinga, Parque Estadual de Tainhas, Parque  Nacional da Serra Geral, Parque Nacional dos Aparados da Serra, São José  dos Ausentes e o Parque Estadual de Ibitiriá. A terceira foi pela campanha  gaúcha. Iniciou na Serra do Sudeste, em Caçapava do Sul, seguiu pela  Depressão Periférica até chegar aos Campos Sulinos, subiu o Rio Uruguai e  terminou nas Missões.

Expedição NATUREZA  GAÚCHA
Livro e exposição  fotográfica
Autor: Zé Paiva
Lançamento: 5 de agosto, terça-feira, a partir  das 19h30min
Local: Centro Cultural CEEE Erico Verissimo
Endereço: Rua dos Andradas, 1223 – Porto Alegre/RS
Editora: Meta Livros – 144 páginas
Português-inglês
Preço sugerido: R$ 100,00

Patrocínio:
Eletrobrás
Banrisul
Ministério da Cultura – Lei Rouanet
Apoio:
Governo do Estado –  RS
Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Fundação  Zoobotânica
Ibama

Assessoria de  imprensa:
Nexo Comunicação
(51) 9196.0249