Família Renz

A convite da Mútua – Rede de Reciprocidade fui conhecer a propriedade agroecológica da Família Renz, em Cerro Grande do Sul. O dia não podia ser mais lindo, aquela luz de inverno, baixa e quente. A hospitalidade da família também não podia ser maior, mesmo em meio a pandemia nos receberam, sem abraços e beijos, mas com o calor dos olhares e os sorrisos por trás das máscaras.

A história da família na agroecologia tem 5 anos e foi deflagrada a partir de um câncer da Laura, esposa do Carlos. A partir daí eles decidiram abandonar o uso dos venenos na agricultura que praticavam pois, além de prejudicar os que ingeriam os alimentos, tinha causado a doença. No vídeo abaixo Carlos conta um pouco dessa história de vida emocionante.

Quarentena contemplativa

Passei os primeiros 40 dias da quarentena (literalmente) em Viamão, no Rio Grande do Sul, no centro budista CEBB Caminho do Meio. Lá, tive a oportunidade de acompanhar o trabalho da Mútua Rede de Reciprocidade. A Mútua começou com projetos de educação ambiental nas escolas de Porto Alegre, introduzindo o conceito de alimentação saudável através de hortas e feiras agroecológicas. Aos poucos, começou a entregar cestas de orgânicos em casa e agora, com a quarentena, viu as entregas crescerem vertiginosamente.

Claro que, em parte, o motivo é as pessoas não quererem sair de casa. Mas acho que o desejo de uma alimentação mais saudável também deve ter sido um fator importante. Em tempos de pandemia, a imunidade é uma preocupação.

Isso me fez refletir sobre as mudanças que estamos vivendo. O fato de ficarmos mais em casa, talvez esteja fazendo muitas pessoas refletirem sobre suas vidas e sobre os caminhos que a humanidade está tomando. O reflexo disso começou em pequenas ações, como cartazes nos prédios de pessoas se oferecendo para fazer compras para os seus vizinhos idosos. Agora, tenho visto reflexos em maior escala.

Na visão budista podemos ver os obstáculos como oportunidades.

Um exemplo vem da Holanda, onde um grupo de 170 acadêmicos propõe uma política de decrescimento baseada em 5 pontos: adotar um modelo econômico que não seja baseado no PIB, redistribuição de renda, agroecologia, redução de consumo e cancelamento de dívidas. Veja mais detalhes aqui.

Outro exemplo interessante vem da França, que está criando um fundo de 20 milhões de euros para dar 50 euros a cada pessoa que queira consertar sua bicicleta, além de criar mais ciclofaixas e ciclovias. Eles estão pensando na saúde dos cidadãos, pois assim farão exercício enquanto se locomovem, diminui a aglomeração nos metrôs e também como uma forma de diminuir a poluição na cidade. Veja mais aqui.

Na visão budista podemos ver os obstáculos como oportunidades. Talvez essa pandemia seja uma grande oportunidade de repensarmos todos nossos valores como sociedade e assim construir um futuro mais verde para todos.

Filhos de Sepé

A agricultura convencional baseada em agrotóxicos e insumos químicos domina o mundo. Em 2013, a média de consumo no Brasil foi de 7,6 litros de veneno/pessoa/ano, segundo a ABRASCO*. A agricultura orgânica (predominantemente familiar) ocupa apenas 940 mil hectares das terras no Brasil, enquanto a agricultura convencional usa 240 milhões de hectares. No entanto o Brasil é o país onde a agricultura orgânica mais cresce no mundo: 30% ao ano!

Sementes crioulas do seu Tisott no Assentamento Filhos de Sepé, Viamão, Rio Grande do Sul.

No final de fevereiro tive a alegria de visitar três produtores agroecológicos no assentamento do MST Filhos de Sepé, em Viamão RS. Este assentamento foi criado em 1998 numa área de 9.450 hectares que abriga 376 famílias. Esta área fica dentro da APA (área de proteção ambiental) Banhado Grande, com 133.000 hectares.  Dentro do assentamento, foi criada pela SEMA (Secretaria do Meio Ambiente do RS), em 2002, uma unidade de conservação chamada Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos, com 2.543 hectares. Ali, além de habitarem várias espécies de aves e o jacaré-do-papo-amarelo, é a única região do Rio Grande do Sul onde ainda encontra-se o cervo-do-pantanal.*

Na primeira visita fomos à um mutirão para a colheita artesanal de arroz negro orgânico, na propriedade de Huli Zang. O MST no Rio Grande do Sul é hoje em dia o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, sendo que o assentamento Filhos de Sepé é a maior área contínua de plantio de arroz orgânico. Nas outras duas visitas, estivemos nas propriedades do seu Tisott e da dona Nilza, que cultivam várias espécies de plantas.

Nestas visitas, aprendemos que a agricultura agroecológica não é apenas um sistema que não usa venenos nem insumos químicos. Na verdade, é um estilo de vida, no qual o agricultor vive e produz em harmonia com a natureza. Apoiar a agroecologia, consumindo sua produção através das feiras ecológicas e outras iniciativas, pode ser um caminho não só para melhorar nossa saúde, mas também para construir um novo modelo de economia e de sociedade mais justa e ecológica.

*Fonte:  Dissertação de mestrado de Ricardo Diel – Gerenciamento de recursos hídricos: um estudo de caso no assentamento Filhos de Sepé – UFSC 2011

Bacopari, a lagoa contemplativa

Em janeiro fiz um retiro de meditação no CEBB Bacopari, centro budista no Rio Grande do Sul orientado pelo Lama Padma Samten, próximo a lagoa homônima. Esta lagoa faz parte de um rosário de lagoas costeiras que começa em Florianópolis e vai até o Uruguai. Mais ao sul fica a Lagoa do Peixe, que dá nome ao Parque Nacional e é considerado um dos mais importantes paradouros para aves migratórias no Brasil. Entre os ilustres visitantes da região estão os flamingos que fogem do inverno chileno e o maçarico-de-papo-vermelho, que percorre mais de 20 mil quilômetros de um polo ao outro. Este parque está no roteiro da nossa Expedição Santuário das Aves.

Na verdade não foi um simples retiro, foi uma experiência. Na primeira semana eu e um amigo ficamos responsáveis por cozinhar e servir as 28 pessoas que estavam no retiro, tudo no estilo Zen Budista. Fomos treinados pela Monja Shoden e pelo tenzo, o cozinheiro da Vila Zen, durante os três primeiros dias. Na segunda semana assumiu o chef oficial do retiro e tirei uma semana para visitar a família. Voltei para fazer a segunda parte do retiro, duas semanas meditando doze horas por dia.

Entre uma coisa e outra, aproveitei para fotografar a bela Lagoa do Bacopari. Como pratico meditação há mais de dez anos minha fotografia tem cada vez mais assumido um olhar contemplativo. Nem sempre medito antes de fotografar, na verdade o próprio ato de fotografar torna-se uma prática meditativa.

Este ano quero retomar as oficinas de fotografia contemplativa que iniciei em 2018. Espero assim beneficiar as pessoas ajudando-as a desenvolver um olhar contemplativo, não só na fotografia, mas na vida.

Transtorno de deficit de natureza

Aluno em sala de aula ao ar livre na comunidade quilombola de Mumbuca, Jalapão, TO

O jornalista Richard Louv cunhou o termo “transtorno de deficit de natureza” para explicar a falta de contato que as pessoas estão tendo com os ambientes naturais e suas consequências. Muitas vezes problemas como deficit de atenção ou hiperatividade podem ser somente falta de contato com a natureza. Em algumas escolas americanas constata-se a alarmante taxa de 30% de alunos usando Ritalina (medicamento para combater estes sintomas). As pessoas em geral e as crianças principalmente estão cada vez mais dentro de ambientes fechados vivendo em mundos virtuais.

Você pode simplesmente levar seus filhos para caminhar no parque, ou fazer uma pequena horta em casa, ou ainda uma trilha de vez em quando. Será um bom começo. E se for você quem está com falta de contato com a natureza, podemos lhe ajudar com as expedições fotográficas organizadas por Zé Paiva em parceria com a Brazil Trails. São uma excelente alternativa para combater este problema. 🙂

Encontros com homens notáveis

Na recente viagem que fiz aos Estados Unidos, entre julho e agosto, encontrei com alguns homens notáveis. O título deste post inspirou-se no livro homônimo do mestre armênio do início do século XX, Gurdjieff. Na verdade também é uma forma de homenagear estes mestres que tive a felicidade de encontrar.

Kazuaki Tanahashi

Mestre Kaz com meu livro “Expedição Tocantins” e eu com o seu livro “Painting Peace”.

O primeiro encontro foi com Kazuaki Tanahashi, ou simplesmente Kaz Sensei, em Berkeley, Califórnia. Artista, mestre do Zen budismo, tradutor, editor, escritor e ativista anti nuclear, ele esbanja jovialidade do alto dos seus 85 anos. Eu o havia conhecido em junho quando esteve no Brasil para exposições, oficinas e retiros, trazido pelo CEBB. Fotografei sua passagem pelo Rio Grande do Sul e ficamos amigos. Perguntei se poderia conhecer seu estúdio quando fosse aos Estados Unidos e ele, depois de um momento de silêncio, para minha surpresa disse: maybe you can have dinner with us (talvez você possa jantar conosco). Dito e feito. Final de julho estávamos na sua casa para um jantar memorável na companhia de sua esposa Linda.

Depois do jantar ele nos convidou para conhecer seu estúdio e as obras que havia feito naquele dia. Foi emocionante conhecer seu espaço de criação e toda a simplicidade e poesia deste grande mestre.

Kim Weston

Eu e Kim defronte a escrivaninha usada por seu avô Edward Weston.

O segundo encontro foi com Kim Weston, fotógrafo e neto de Edward Weston, um dos meus grande mestres. A fotografia já está na família por quatro gerações. Kim mora em Wildcat Hill, a casa onde Edward morou na última parte de sua vida. Weston foi considerado um dos maiores fotógrafos do século XX. Morou alguns anos no México onde conviveu com Diego Rivera, Tina Modotti e outros artistas da “Renascença mexicana”. Foi emocionante conhecer a casa, ver as obras e inclusive o laboratório onde trabalhou uma dos grandes mestres da fotografia.

Frans Lanting

Lanting e eu no seu escritório em Santa Cruz, Califórnia.

O terceiro encontro, com Frans Lanting, foi inesperado. Colaborador da National Geographic, já realizou grandiosos projetos pessoais como por exemplo “Life: a journey through time”, no qual conta a história da vida na Terra através da fotografia. Lanting é considerado hoje um dos maiores fotógrafos de natureza do mundo.

Antes de sair do Brasil eu havia escrito para a secretária de Frans Lanting mas ela me disse que ele não estaria em Santa Cruz (onde fica seu escritório) nessa época. Quando chegamos lá, ela disse que ele estava, mas não poderia nos receber pois estava numa reunião. Ficamos olhando a galeria e para nossa surpresa, ele desce as escadas de bermuda e chinelo! Nos recebeu com a simplicidade de um mestre e ainda ganhei um livro seu de presente.

Dul-tson-kyil-khor, a mandala de pó colorido

[slideshow]

Durante oito dias o monge Tenzin Thutop, do Mosteiro Namgyal de Ithaca NY, trabalhou construindo uma mandala de areia, uma antiga prática do budismo tibetano. No oitavo dia, para surpresa e admiração dos nossos olhos ocidentais, ele tranquilamente desmanchou a mandala, depois de algumas preces, distribuiu alguns punhados de areia para o público e jogou o resto num pequeno lago, numa cerimônia que durou alguns minutos.

Esta mandala de areia foi parte da programação da II Semana de cultura Tibetana,  que aconteceu de 27 de maio a 4 de junho de 2011 na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, e foi promovida pelo Centro de Cultura Tibetana, com apoio do escritório do Tibete em Nova Iorque. Acompanhando a mandala de areia estava a exposição coletiva “The Missing Peace” e fotos históricas da fuga e exílio do Dalai Lama, além de thangkas tibetanas (pinturas em tecido com motivos budistas). O evento teve palestrantes ilustres como Robert Barnett, da Columbia University, os jornalistas Haroldo Castro e Luis Pelegrini, além do representante de S.S Dalai Lama para a América Latina, Tsewang Phuntso, entre outros. Além disso houve um jantar tibetano com um chef que além de cozinhar, canta e pinta, Ogyen Shak.

Mandala significa casa ou palácio. No caso da mandala budista, o significado seria o  palácio da mente do Buda, onde o azul da mesa simboliza o céu, ou espaço vital. A mandala é feita com milhões de grãos de areia colorida, ou melhor, pó de mármore. Os próprios monges quebram as pedras com marreta, trituram e peneiram o mármore até ele ficar finíssimo. Depois disso tingem várias vezes em mais de vinte tons distintos. Esta prática antigamente era feita somente nos mosteiros nas luas cheia de alguns meses específicos. Hoje em dia é também feita em eventos como este para difundir a arte e a filosofia tibetana. Ela representa a impermanência de tudo na vida e o desapego, principalmente do monge que a realizou.

O DNA da paisagem

livro Expedição Natureza Gaúcha estará na Biblioteca do Fórum Internacional de Livros de Autor, dentro do 5º FestFotoPoa, que acontece de 6 de abril a 1º de maio de 2011. Leia na íntegra o brilhante prefácio do livro, escrito pelo doutor em ecologia da paisagem, professor Rualdo Menegat:

Sitio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, Missões Jesuíticas dos Guaranis

A identidade de cada pessoa é indissociável da paisagem e do lugar onde nasceu. O lugar é uma espécie de sobrenome invisível: embora não conste na certidão de nascimento, possui a mesma importância do sobrenome, como se fizesse parte da natureza humana. Quando conhecemos alguém pela primeira vez, logo perguntamos onde essa pessoa nasceu e onde vive. Também costumamos falar de sobrenomes endereçando-os a algum lugar, como os Vargas, de São Borja; os Verissimo, de Cruz Alta; os Scliar, do bairro Bom Fim; os Barbosa Lessa, de Piratini; os Lopes, de Bagé. A cultura ameríndia também tinha endereço natural, como os caingangues, do Planalto Meridional; os guaranis, das Missões; ou os minuanos, do Pampa.

Cada lugar tem características tão próprias que poderíamos pensá-lo como se portasse uma impressão digital ou um DNA que lhe fossem únicos. Porém, diferentemente dos genes dos ancestrais, os “genes do lugar” não ficam automaticamente registrados no organismo. Mas ficam impregnados, desde que nascemos, em nosso espírito e cultura de modo indissociável. Seja a língua, o sotaque, a comida, os jogos, a religião, tudo está profundamente influenciado pela paisagem, onde a cultura vai sendo cotidianamente construída.

A paisagem é a moldura de nossa cultura e, ao mesmo tempo, define os limites e possibilidades de expansão desta. A cultura desenvolvida pelos ticunas no alto Solimões não é adequada para a vida nos Andes Centrais, pois considera fundamentalmente a paisagem da Floresta Amazônica. Do mesmo modo, a cultura dos incas, no Peru, forjada pela natureza inóspita das altas montanhas andinas, não se adapta às terras baixas e planas do grande Pampa. Uma cultura torna-se tão circunscrita à paisagem que tem dificuldades de se adaptar a outros lugares. Tal restrição ocorre porque quando uma cultura domestica a paisagem ao longo do tempo ela ajusta os instrumentos culturais, desde habitação até visão de mundo, àquele lugar. O processo de domesticação não é outro senão a transferência do DNA do lugar à cultura, e vice-versa, de modo que ambos se pertençam. Isto é, ao ver a paisagem, logo identificamos o personagem que a habita, e, ao ver este, de imediato pensamos na paisagem.

Quando a paisagem é domesticada, passa a ser importante ingrediente de coesão de grupos humanos. Toma parte das qualidades peculiares de um povo, integrando-lhe o caráter, o modo de ser, como em “ser gaúcho”, ou “ser pampiano”, “serrano”, “missioneiro”, “litorâneo” etc. Fazemo-nos pertencer ao lugar, às vezes, sem mesmo conhecê-lo apropriadamente. Embora possamos não ter visitado todas as paisagens do Estado, dizemo-nos mesmo assim “gaúchos”, às vezes sem nem sequer ter saído do lugar em que nascemos. Por força do hábito, podemos enxergar para além da própria realidade da paisagem, e a vemos mais do ponto de vista cultural que do ponto de vista da descrição natural, de como ela é de fato. Como se criássemos certos mitos acerca do lugar, numa espécie de cegueira.

Por exemplo, com frequência dizemos que o Pampa gaúcho é uma “enorme planície”. Com isso, queremos fazê-lo parecer semelhante ao vasto Pampa argentino, ecorregião que abrange cerca de 600.000 quilômetros quadrados, mais do que duas vezes a área do Rio Grande do Sul. O Pampa argentino é tão extenso e as terras tão planas que a drenagem é mal definida e a água da chuva escoa com dificuldade, acumulando-se em lagos por vezes efêmeros. Originalmente, a palavra espanhola pampa, derivada do quéchua bamba, significava apenas uma pequena planície nos vales intermontanos dos Andes Centrais. Quando no século XVI os espanhóis avançaram rumo ao sul e depararam com a imensidão da paisagem de terras planas e vegetadas por gramíneas, chamaram-na de “grande pampa”.

Na verdade, a área de terras verdadeiramente planas e baixas de nosso Estado é muito pequena. Não temos nem planícies em vales intermontanos nem tampouco grandes extensões planas. Em algumas partes, o relevo é ondulado, com coxilhas e morros arredondados, canais fluviais sempre bem escavados; e, em outras, acidentado, com vales fluviais profundos, morros agudos, serras, escarpas e cânions. Toda essa morfologia ocorre na metade sul do Estado, reconhecida como pampiana.

Dito de outro modo, nosso Pampa tem paisagens muito menos monótonas que o congênere argentino. Em muitos casos, a paisagem sulina é tão peculiar que há um esforço para não vê-la, apenas para fazer de conta que somos semelhantes aos vizinhos do grande Pampa. Indiscutivelmente, nossa cultura é pampiana, o que não quer dizer que nossas paisagens sejam exatamente iguais às das demais culturas pampianas dessa vasta região meridional da América do Sul.

Há, na verdade, uma diversidade de gaúchos na mesma medida da diversidade das paisagens onde essa cultura se instalou e se expandiu. Dizem-se gaúchos os que habitam a Patagônia, onde criam ovelhas nas zonas mais amenas desse semideserto da região mais meridional e fria de nosso continente. Também se dizem gaúchos os que povoam grande parte do Chaco argentino-paraguaio e até do Pantanal Mato-Grossense, onde criam gado e tomam mate frio, o tereré. São gaúchos os que ocupam a área contígua ao Rio Grande do Sul chamada de Campos Sulinos, no vizinho Uruguai; e, claro, são gaúchos os que lidam com o gado e tomam mate quente, porém em cuia pequena, na imensa planície argentina chamada de grande Pampa.

Enfim, as vastas terras baixas e planas que se estendem desde a fria Patagônia e grande Pampa até parte do Chaco paraguaio-argentino e respectivas áreas adjacentes um pouco mais elevadas ensejaram uma ocupação humana que possui forte identidade na cultura do manejo de gado, chamada de “gaúcha”. Na ampla configuração de nosso cenário, qual seja, a parte não andina da região meridional da América, somos a porção do extremo oriente dessa cultura, habitando uma espécie de “‘pampa alto”, “pampa coxilhado” ou “pampa serrano”. Assim como também pertencem a um “pampa alto”, porém paisagisticamente distinto, os que habitam as terras elevadas no bordo oeste do Pampa argentino, mais próximo dos Andes.

Visitar o lugar do outro, do vizinho, do estrangeiro longínquo, é sempre um exercício cognitivo e cultural que ajuda a descobrir a própria paisagem para além do hábito que cegamente vamos mantendo. Do mesmo modo, quando outras pessoas que não moram onde vivemos vêm descrever “nosso lugar”, aprendemos a ver a terra pelos olhos daqueles que não estão a ela habituados, isto é, embebidos em uma espécie de cego encantamento.

O hábito, por ser muito afeiçoado ao lugar, não permite que vejamos a paisagem a partir de outras perspectivas ou pontos de vista que não sejam “o nosso”, quer dizer, de nossa identidade cultural aderida ao território. Por isso, as narrativas de viajantes sempre foram um gênero literário de muito sucesso em todas as épocas. A começar pelas mais antigas, como as Historias do grego Heródoto, o “pai da História”, que no século V a.C. descreveu no livro II o mundo egípcio com horror e fascínio e nos fez ver que cultura, etnografia e história pertencem ao lugar. Ou as do veneziano Marco Polo, que narrou no livro Il Milione a viagem ao então estranho mundo oriental no século XIV. Ou as consagradoras descrições dos naturalistas românticos do século XIX, em que se incluem as de ilustres sábios que visitaram o Rio Grande do Sul, como Auguste Saint-Hilaire, Aimé Bonpland, Friedrich Sellow, entre outros.

O trabalho de naturalistas e viajantes constitui fonte de conhecimento de nossa paisagem a partir de outras perspectivas. Mais além, são também uma memória das mudanças paisagísticas que ocorreram desde épocas em que os únicos instrumentos de registro eram a escrita e o desenho em cadernetas de campo. Os trabalhos poderiam ser acompanhados de coleta de espécimes vegetais, animais e minerais, bem como de belas aquarelas. No século XX, principalmente a partir da consolidação dos cursos universitários de História Natural nos anos 1950, os relatos de viagem que integravam várias modalidades disciplinares foram perdendo terreno, e o gênero quase desapareceu.

Por isso, a publicação desta obra do fotógrafo Zé Paiva é motivo de grande e estupenda alegria. Utilizando-se de recursos modernos, do arsenal de equipamentos fotográficos e adequada logística, brinda-nos com uma incursão pela paisagem gaúcha que recupera a ideia dos percursos de uma viagem naturalista. Em vez de longos textos, Paiva apresenta uma obra numa linguagem visual própria da contemporaneidade. Mas suas fotografias não são a busca do óbvio, de imagens já muito difundidas em cartões-postais. Longe disso, o autor apresenta sequências inseridas dentro de incursões pela paisagem do Escudo Sul-Rio-Grandense, Planalto Meridional, Depressão Periférica e Planície Costeira. Os percursos, por sua vez, são localizados dentro da diversidade de paisagens que compõem as ecorregiões gaúchas.

Assim, o leitor poderá acompanhar o espírito de aventura, de busca, de investigação de um amplo espectro de temas que conformam o DNA de uma paisagem. Dos elementos rochosos, vegetais, animais, capturados em detalhes de rara composição. Do conjunto paisagístico denotado pelas formas do relevo, nuvens e cores do céu. De expressões culturais de habitantes de regiões distantes, ermas, onde se fabrica a simbiose dialética entre cultura e paisagem. São flagrantes fotográficos que anunciam nossa condição neste mundo: de espectadores e, também e cada vez mais, de modificadores da paisagem.

A incursão de Zé Paiva é uma busca instigante da natureza recôndita, aquela que ainda está de alguma forma guardada em parques e áreas de preservação. É um modo sutil de anunciar o pouco que resta e o tanto que perdemos ou que ainda podemos perder. Por ser fruto de um viajante que segue os passos da cognição naturalista, a obra tem perspectiva, tem posição: a de mostrar em cada flagrante como a natureza é bela e diversa na sua própria naturalidade, isto é, para além dos clichês habituais que porventura aprisionam as múltiplas paisagens de nosso Estado.

Botando banca na ESPM

Sábado passado, fui a Porto Alegre para participar da “banca” da quarta turma do curso avançado de fotografia digital da ESPM. Banca entre aspas, porque na verdade não iríamos dar nota para os trabalhos. A intenção era mais apontar possíveis caminhos e comentar os portfólios resultantes do trabalho de conclusão do curso. O nível geral dos trabalhos foi muito bom. Um diversidade enorme na forma de apresentação dos portfólios: alguns em ampliações enormes com paspatur e caixa, outros menores, outros sem paspatur e sem caixa, tinha até um numa maleta com cadeado! A diversidade de temas era grande também: nús, moda, arquitetura, natureza, e outros. Tecnicamente todos os trabalhos estavam bons. A maioria pecava pela falta de unidade no conjunto, o que é um problema de edição. Isso é normal quando se edita o próprio trabalho, pois o apego interfere na escolha das fotos. A dinâmica do trabalho foi a seguinte: de manhã nos reunimos no estúdio da ESPM, onde os integrantes da banca, eu, Ricardo Chaves, o Cadão, editor de fotografia do jornal Zero Hora, Eduardo Veras, professor, crítico de arte e ex-editor do segundo caderno da Zero Hora, e Guilherme Lund, fotógrafo e professor da ESPM, acompanhados do coordenador do curso, o professor Manuel da Costa, analisamos os portfólios impressos durante a manhã toda. A tarde houve uma projeção dos trabalhos seguida dos nossos comentários. No final houve um coquetel na galeria de arte da ESPM. Muito interessante a diferença entre ver o mesmo trabalho impresso e projetado, muda bastante. [slideshow]

A Kombi

Estava voltando do Canela Foto Workshops, na Serra Gaúcha, quando resolvi parar no Café Tainhas, em Cambará do Sul. Desço do carro e encontro saindo do Café Fernando Bueno, o mentor do evento, acompanhado do mestre Evandro Teixeira, Dudu Contursi, Cadão Chaves (editor de fotografia da Zero Hora) e Rogério Reis (Tyba RJ). Eles estavam indo fazer um passeio no canyon do Itaimbezinho. Depois de um rápido papo, nos despedimos. Foi ai que eu vislumbrei no estacionamento uma velha Kombi azul-calcinha com rodas vermelhas. Voltei para o carro e peguei imediatamente a câmera. Foi quase instintivo, sem pensar. A atração visual era muito forte. Cores contrastantes, a antiguidade do carro – uma verdadeira lenda. Comecei a fotografar e fui percebendo os detalhes hilários: um desentupidor de privada amarrado no bagageiro, retoques na pintura com spray prateado, um xis de fita isolante no farolete. Depois de alguns minutos um rapaz se aproxima de mim e começa a puxar assunto. Logo percebo que estou diante do dono. Começo a falar do meu êxtase visual diante do carro e ele se empolga. Logo chegam o seu amigo e a namorada. Me dou conta de que eles estão indo passar o carnaval na praia e é tudo uma grande brincadeira, o spray prata, o desentupidor, as cortinas… Depois de um chimarrão trocamos emails e nos despedimos. Imagino o que eles levariam dentro da Kombi…[slideshow]